pedras, flores e elefantes nr.14
uma lagarta e mais nada que valha tanto
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tinha uma essa lagarta no meio do caminho
eu, caminhando, ela também
nossos tamanhos e pesos tão diferentes, minhas passadas largas, perigosas pra existência dela
dei sorte de vê-la, sorte
nossa!
a caminhada é pra saúde do corpo, mas faz bem pra cabeça
quando ando, escuto um podcast de filosofia
foi filosófico meu encontro com a lagarta: “ela é estranha”
retomei a caminhada preocupado
e se, em outras vezes, em vez da observação meu encontro rendeu um assassinato?
conseguiria caminhar sem matar ninguém dali pra frente, inclusive minha nova amiga, que estava numa jornada toda dela, de atravessar a “pista”, rio de pedrinhas, dividindo o gramado do matinho? a gente vive matando…
com tantos pés, como se contam seus passos? a lagarta caminhava para o mato
Gabriel Tarde, em Monadologia e sociologia (1895), escreveu que todas as coisas do mundo carregam ou têm suas existências movidas a crença e desejo. é como eu entendo o conceito — não o leve como certeza, por favor, melhor ler o livro
cada partícula, crença e desejo
é o que faz o oxigênio se juntar a dois hidrogênios e aí, água ou
juntar-se a outros elementos e aí outra coisa e outra coisa
escolha? destino? acaso? vocação?
o que move a lagarta? por que ela se arrisca nesse caminho aberto, por melhor que seja seu disfarce, a camuflagem peludinha e chique dela? o que espera encontrar ali no matinho?
me preocupa a frustração da lagarta
mais duas voltas e ela chega perto, não é tão lenta: se soubesse calcular as proporções, descobriria que lento sou eu
ela quer alguma coisa e consegue pelo menos aparentemente o mais óbvio, que é a travessia
crença e desejo e a ignorância que chamarei de mistério
com quantas lagartas cruzamos todos os dias?
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meus amigos
têm a péssima mania
de morrer no dia errado, no tempo errado
vou encher o saco, assim que os vir de novo
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tem dia que a gente acorda
e sente que nada adianta, nada
dá tudo errado
você come mais salada que massa, trabalha muito, diz por favor e obrigado, lê mais e melhor, toma dois banhos curtos, reduz a pegada ecológica ao mínimo e sorri pras pessoas, sorri até quando diz não
mas a enxurrada de mundo arrasta a cara da gente no chão de pedrinhas
e vai longe
pra que levantar de novo?
e ao mesmo tempo:
por que não levantar de novo?
Nietzsche, teu nome de z e s corrigido pela inteligência artificial, me lembra que a ideia do eterno retorno não resolveu ainda minha guerra com a paz
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eu trabalho no ensino de escrita
não sou escritor, sou professor
o que eu posso é ser, no máximo, o Ted Lasso do ensino de escrita
professor que ouve, orienta, se propõe a ajudar e incentivar, arruma estratégias pra driblar algumas teimosias das pessoas, algumas arrogâncias que atrapalham a própria pessoa, e nisso é preciso ser delicado, cuidadoso
Ted Lasso não jogou futebol mas treina jogadores profissionais
Ted Lasso é ficção
tenho vontades, projetos, mas no momento me dedico à escrita de outras pessoas. acho um trabalho muito bom
e enquanto não escrevo, me invento
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nesse mundão tem muito mais silêncio que espaço vazio, muito mais barulho que escuta, muito mais a se dizer do que se diz
e ainda se usa a palavra comunicação, que já esteve por um fio e agora é wifi — palavra esvaziada, não vale mais nada
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